Com as pauladas que a gente vai levando pelo caminho, vai ficando calejada. Vai entrando pra dentro da concha. Vai guardando histórias.
Houve um tempo em que eu escrevia mais livremente. Levemente.
Já não posso.
Talvez por isso eu tenha evitado contar de minhas últimas idas ao meu tão querido Mocotó. Pra guardar pra mim aqueles momentos, sem misturar trabalho no meio.
Ou talvez eu tenha evitado escrever simplesmente porque detesto chover no molhado. Até os jornalistas gringos, de François Simon do Figaro (o famoso porém preguiçoso e desinformado, que sequer se dá o trabalho de corrigir seu vídeo em que troca Tordesilhas por Mocotó) ao ótimo Carlos Maribona , da Espanha, já desfiaram elogios.
Pra quê repetir aqui o óbvio? Quem é que já não sabe, com tudo o que se escreve dele, que o Mocotó é uma delícia de programa para um sábado ou domingo preguiçoso?
Mas aí soube de um certo almoço recente na casa de um certo Mr. G. - aquele que encorajou o garoto desde o início - e o coração balançou de saudade. Vontade de compartir.
Taí, vou contar: descobri o menino Rodrigo uns anos atrás, não por matéria de revista ou jornal, mas graças ao mr. G. - aquele que ODEIA ser citado neste blog. Ele teve a esperta ideia de lançá-lo nas altas rodas convidando-o a servir aos bacanas num almoço bico-fino uma mocofava, lado a lado com um cassoulet do Laurent. Foi quando o povo que nunca tinha posto os pés na Vila Medeiros resolveu que valia a pena chamar um táxi especial e ir "desbravar": a mocofava ganhou de lavada!
Pois bem: um tempo depois almoçamos juntos, eu, ele, mr G.
Vi o brilho nos olhos daquele gentil cozinheiro, o entusiasmo febril que só alguns têm, a gentileza, a atenção com que ouvia e absorvia tudo, e logo entendi que ele iria longe.
Hoje, leio com grande satisfação os textos dele na Folha, que falam de coisas não-ditas. De tapioca, que tanto brasileiro desconhece, por exemplo. Textos que abrem os olhos dos mal-informados para a beleza escondida na feiúra da grande São Paulo, para os bairros menos badalados.
Ah, que orgulho tenho do fato de Rodrigo nunca ter se rendido aos mil e um convites para mudar o Mocotó para algum bairro de bacana.... não é hora das pessoas verem que a cidade não termina nos Jardins ou no Itaim?
Não me lembro se antes ou depois daquela comilança no Due Cuochi, finalmente fui conhecer o Mocotó.
Justo no dia em que baixou por lá uma espanholada de responsa, inclusive o Joan Roca. Ah, sim, e o Alex Atala. E... um bando de gente bacana. Que tarde incrível! Até hoje sinto pena de ter perdido a foto histórica que tirei de Joan Roca e Alex Atala parando os carros na frente do Mocotó, fazendo pose no asfalto.
Naquele dia descobri, pela primeira vez, aqueles dados de tapioca incríveis, hoje tão copiados.
Eu, cachaceira e pimenteira que só, me senti em casa desde o primeiro minuto. E lá tem cachaça, sim sinhô, e das boa. E pimenta, e farinha, e cozinha nordestina feita com cuidado mas sem frescuras. E tem filas e filas também - disso, já não gosto nada.... :)
Depois daquele dia voltei, lógico. Não com a frequência que gostaria, já que moro meio longe (oi? Montréal!). Num certo almoço, uns meses atrás, fazia um calor pra nordestino nenhum botar defeito, e eu sentia a cachaça evaporando pelos poros, o suor correndo pelo peito. Felizmente, arrumei lugar no quintal dos funcionários, graças ao seu Zé, bem do lado da geladeira das cervejas...
Apesar do bas-fão, mandamos ver. Do festim, o que mais me impressionou foi o "carpaccio" ou "carpacho" de carne de sol curada, um samba de texturas, um frescor tão bem-vindo. Queijo coalho ao invés de parmesão, lógico.
Mas nesta versão mais clássica, quente, com molho, alho e pimenta biquinho, a mesma carne de sol, tenra e cheia de gosto, era boa que só, também....
Em outra ocasião, convidei Rodrigo para vir cozinhar para os leitores deste Boa Vida no Astor. Um encontro anual que me é muito querido. Ele veio, de bom grado, e serviu o melhor prato dele que já provei.
Era uma paleta de cordeiro recheada com copa (o pescoço do cordeiro), com cuscuz de farinha d'água. Cordeiro assim, no Brasil, nunca tinha comido. Nada neste mundo é à toa: o cordeiro era bom daquele jeito porque vem de um super produtor - uma família, na verdade, que não faz outra coisa senão criar os bichinhos para depois abatê-los. Dedicação total.
E qualquer coisa com farinha d'água, para mim, é covardia - eu adoro. Mas esse cuscuz, que tinha também jerimum e pimenta cambuci, era chose de lóc.
(Esse almoço, aliás, foi histórico. Aqui, o relato completo).
E aí, em abril passado, o chef Felipe Bronze, do restaurante ORO, veio a São Paulo. Um chef que me encanta cada vez mais por sua vontade de fazer direito, de aprender, de andar pra frente. Estávamos em estúdio, fotografando uns pratos dele para a GQ, já era tarde e ele disse:
- Já que vim até São Paulo... tem um lugar que tenho muita vontade de conhecer, quero ir lá hoje...
- Que lugar?
- O Mocotó. Faz tempo que estou pra ir lá.
- Ah, então vambora! Vou pedir pro Rodrigo botar mais água no feijão!
E lá fomos nós. Desses raros luxos que temos nós, os jornalistas falidos porém independentes: poder gastar uma tarde no meio da semana comendo e bebendo na Vila Medeiros.
E como comemos bem, minhanossasenhora! Aquela tapiocona recheada com carne seca e requeijão-do-norte, suculentíssima.... o feijão novinho, fresquinho, com manteiga de garrafa e bacon... de chorar. Felipe estava pasmo, juro.
Só descobriram no final que era meu aniversário. Felipe se espantou. "O quê? Não quis estar com a família? Assoprar velas do bolo entre amigos?".
Que nada... naquele momento, entre um gole e outro de cachaça, papeando com chefs que admiro e vendo a chuva chegar de mansinho, eu era feliz....
Felipe Bronze, à esquerda, seu Zé Almeida, pai de Rodrigo e fundador do Mocotó, e o filho bom de tempero |
E a seguir, a explicação de como chegar, roubada do blog do querido Riq Freire, o Viaje na Viagem:
Mas a minha teoria é que não é apenas a qualidade da cozinha que fez o sucesso do Mocotó. Sem o Google Maps este restaurante continuaria no completo anonimato
Uma vez na Conceição, siga toda vida até aparecer uma rua Rev. Israel Vieira Ferreira (a placa grande dirá apenas “Israel”) e então suba até a Av. N. Sra. do Loreto, que aparecerá à sua direita. Pronto, chegou.