Minha coluna no caderno COMIDA da Folha, esta semana, deu o que falar. Alguns chefs ficaram bravos e/ou desapontados com o que, para eles, soou como um insulto.
O texto terminava com a seguinte frase:
Mas no país do frango de granja industrial, onde poucos sabem diferenciar um linguado de uma pescada, até que o cidadão comum interesse-se pelos diferentes bichos que lhe dão a comer há um longo caminho...Em nenhum momento eu disse que CHEFS não sabem a diferença entre linguado e pescada. Basta ler bem para se notar que estou falando do "cidadão comum". Do típico cliente de restaurante. Do cara que vai ao restaurante japonês do bairro e pede um combinado de sushi e sashimi "mas sem peixe branco".
A questão de como a origem dos ingredientes afeta o produto final, e de como a falta de conhecimento dos produtos resulta no mesmismo em menus (e dá-lhe salmão, linguado, robalo e atum...) é super complexa.
Lista de pedidos de peixes e frutos do mar de importantes restaurantes, no centro de processamento de um dos melhores peixeiros de São Paulo |
Na Folha de quarta-feira sequer toquei no departamento de frutas ou verduras, justamente pelo pouco espaço, por isso escolhi focar nas "proteínas", nos animais. Procurei resumir o assunto - mais especificamente, o esforço de certos chefs estrangeiros de servirem vacas, aves ou peixes de espécies autóctonas de suas respectivas regiões. Mas eu não podia passar de 2200 caracteres. O texto tinha que ser super condensado e, consequentemente, para alguns leitores, acabou parecendo que apenas dei umas pinceladas superficiais, sem explicar-me bem.
Pois aqui neste Boa Vida, onde não há limites de caracteres, posso alongar-me no tema. Aos que tiverem paciência e interesse, peço licença para falar um pouco da onda que vem sido chamada, lá fora, de "locavorismo", ou "localismo", em português.
Na América do Norte a onda contra os alimentos produzidos em massa (com a ajuda de fertilizantes sintéticos, antibióticos, pesticidas, etc) ou muito viajados – não só poluidores como geralmente menos saborosos e saudáveis - surgiu já há muitos anos mas continua super forte. A última prova disso foi a capa desta semana da edição europeia da revista TIME, que aponta o chef René Redzepi do NOMA como o heroi dos locavores.
O manifesto dos locavores tem sido largamente disseminado na internet e em livros como Slow Food Nation: Why Our Food Should be Good, Clean and Fair.
Redzepi vem se firmando como o novo líder do movimento, mas a musa original, sem dúvida, é Alice Waters, que virou notícia quarenta anos atrás ao servir verduras orgânicas de fazendas próximas em seu pequeno restaurante Chez Panisse, em Berkeley, na Califórnia.
Lá não há cardápio fixo, e o menu do dia depende do que o verdureiro puder entregar. Nos anos 70, sustentabilidade era palavrão. Hoje, ela é considerada uma visionária. E como não é boba nem nada pegou carona na alta do localismo e lançou seu próprio manual de sobrevivência para locavorianos, o livro The Art of Simple Food: Notes, Lessons and Recipes From a Delicious Revolution.
Localismo nada mais é que uma versão turbinada daquela velha história da cozinha do terroir, cujos ingredientes devem refletir a terra de onde vêm. Afinal, o termo francês pode facilmente ser abusado por chefs querendo vender seu peixe, por ser vago demais. Um terroir pode ter qualquer extensão – posso dizer que o meu vai do Oiapoque ao Chuí, que tal? – e costuma ser interpretado liberalmente conforme a necessidade do restaurante.
Já o localismo não deixa dúvidas de onde vêm os ingredientes. Tem que ser, no máximo, de um raio de 250 milhas de onde vai ser servida a comida em questão (em milhas porque é a medida usada nos Estados Unidos, foco do movimento). Em cidades mais quentes, como Miami e Los Angeles, onde é bem mais fácil conseguir frutas e verduras locais o ano todo, uma dieta localista não deve incluir nada trazido de mais de 100 milhas de distância.
Fácil, nunca é. Comida local custa mais e dá trabalho porque não há constância no fornecimento.
O localista típico torna-se freguês do Farmers’ Market de seu bairro ou vilarejo (espécie de feira geralmente com foco em orgânicos e vendendo além de frutas e verduras muitos bolos, salgados, compotas e geléias), comprando no supermercado apenas não-perecíveis. Talvez a maior e mais famosa dessas feiras seja a que acontece diariamente na Union Square, em Manhattan, onde encontra-se couve da fazenda Phillips (viagem de 59 milhas), batata-doce da fazenda Yuno’s (61 milhas), licor de pêras da distilaria Warwick Valley pela internet (46 milhas) e também vódca feita no vale do rio Hudson (72 milhas).
No Twitter, pessoas rapidamente defenderam-se da minha acusação de que o Brasil é o país do frango de granja industrial dizendo que servir ingredientes produzidos artesanalmente em um restaurante muitas vezes é inviável financeiramente ou até ilegal. Não concordo. Custa mais, é claro. Dá mais trabalho, é claro. Mas que é possível, é.
O José Barattino do Emiliano que o diga - ele é um dos chefs mais engajados em servir, por exemplo, legumes e verduras orgânicos vindos do interior de São Paulo. Viram o evento super bacana que ele armou há pouco tempo, em plena Oscar Freire? Aqui neste link eu conto....
E não posso acreditar que seja proibido trabalhar com frango orgânico em um restaurante, por exemplo. Ou procurar servir peixes do mar mais próximo, como vem tentando fazer o Alberto Landgraf, do Epice, ao invés de salmão chileno. É difícil achar um bom fornecedor que possa garantir a entrega de peixes ótimos do litoral paulista, sem variações na qualidade? Pelo que me contam vários chefs, é dificílimo. Mas não impossível.
No Brasil, os chefs encontram dificuldades para trabalhar com produtos locais porque a oferta ainda é relativamente pequena. Uma coisa puxa a outra. Se houver mais demanda, aumentará, inevitavelmente a oferta. E os preços cairão.
Mas jamais haverá demanda significativa por alimentos orgânicos ou peixes regionais menos conhecidos enquanto o assunto interessar apenas a poucos chefs e a pouquíssimos clientes de restaurantes.
Um modo super fácil de incentivar o paulistano a saber mais sobre os peixes que come? Nomeando-os corretamente no menu, ao invés de usar generalizações burras como "peixe branco". Um bom exemplo: o menu de sashimis do Aze Sushi, no Itaim, que dá o nome de cada "bicho" em japonês, português e inglês:
Esse menu tem coisa de fora - salmão, vieira - mas não há nada de mal nisso. Eu adoro ambos. Mas por outro lado, tem peixes menos comuns em japoneses, e pescados no Brasil, como xaréu (nham!) e garoupa. E o sushiman Edson Yamashita entende do assunto como poucos, vai sempre ao Ceasa ao invés de delegar esse trabalho a um peixeiro.
Mas voltando a falar de locavorismo, certamente é um tema que dá muito mais ibope lá fora.
Diários contando como é o dia-a-dica de um locavoriano – com receitas e detalhes prosaicos como fotos de sacolas recém-trazidas da feira – têm brotado na blogosfera mais do que chuchu na serra. Exemplo? Leda Meredith, que vive no Brooklyn, em Nova York, e passou um ano inteiro só comendo coisas vindas de um raio de 250 milhas de distância (permitindo-se dar uma “roubadinha” e comprar pó de café, azeite e sal importados).
Quem pôs a chamada dieta das 100 milhas no mapa foi o casal Alisa Smith e James MacKinnon, que passou um ano comendo só o que conseguiam achar perto de casa, em British Columbia, Canadá. A experiência resultou em – adivinhe – um livro lançado em 2007, entitulado Plenty: Eating Locally on the 100-Mile Diet. Inpirados neles, 135 moradores de Manitoba, no Canadá, fizeram no ano passado a mesma dieta durante 100 dias, em pleno inverno. Solidários, um supermercado passou a vender pão das 100 milhas e o restaurante Nicolino’s lançou um menu 100 milhas.
Prender-se às 100 milhas é dureza: só malucos e masoquistas se dão o trabalho de mergulhar no localismo para sempre. Mas muita gente parece topar experimentar a dieta quando sai para comer fora. Basta ver a multiplicação em cidades como Nova York dos restaurantes “sazonalmente corretos”, focados em ingredientes orgânicos, locais e da estação.
Primeiro veio o Blue Hill, de Dan Barber, um chef magricelo que cozinhava e cuidava da horta em sua fazenda, no estado de Nova York, até abrir seu restaurante, em 2000. Uma entrada como “ovos de hoje de manhã, cogumelos colhidos no bosque, verdes da fazenda Stone Barns e caldo de ervas” sintetiza seu estilo. Subentende-se que os ovos estavam sendo chocados até há pouco por alguma galinha nos arredores de Nova York.
Nos últimos anos, surgiram na cidade vários outros restaurantes seguindo a mesma filosofia de culto ao produto local. Franny’s, ABC Kitchen, BLT Market... a lista alonga-se. E como toda nova onda, esta também ganhou aderentes mais interessados em enfeitar a pílula. No ano passado a revista New Yorker publicou crítica do novo Bell Book & Candle, restaurante instalado no porão de um predinho do West Village em cujo teto fizeram uma horta. Diz o autor: “talvez há uma razão pela qual ninguém chegou a tal nível de localismo antes: o molho Thousand Island, estranhamente retrô, mal mascarava o retrogosto de fumaça de escapamento da salada de “folhas vivas””.
Em São Paulo, então, seria ainda pior: um chef teria que lavar uma ou duas camadas de fuligem de seus verdes. Só mesmo comprando produtos do interior....
O localismo, para fazer sentido, requer duas xícaras de chá de responsabilidade social, duas de disposição para ir atrás de pequenos produtores e pagar mais por isso, duas de curiosidade gastronômica e uma generosa colher de sopa de bom senso.