16.11.11

Osteria Francescana de Massimo Bottura ganha 3a estrela - e jantamos lá agorinha!



O chef Massimo Bottura acaba de conseguir o que ele mais queria: a tão almejada terceira estrela Michelin (a edição 2012 foi lançada hoje).

Pois o timing não poderia ser melhor: hoje estreia aqui no Boa Vida como colaboradora uma cozinheira e foodie de mão cheia, Mariana Marshall Parra, que acaba de jantar lá e nos conta tudo!

Estive com Mariana agorinha lá em Turim e quando ela me contou que iria na semana seguinte à Osteria Francescana eu imediatamente pensei em pedir que ela dividisse a experiência dela aqui. Dito e feito - espero que gostem. E Mariana... seja bem-vinda!


Menu Classici da Osteria Francescana – uma ode às musas de Massimo Bottura, por Mariana Marshall Parra

    Osteria Francescana        Foto:Divulgação

Costumo vasculhar todo tipo de informação sobre os chefs em cujos restaurantes eu programo visitar. Não por ser uma versão gastro de groupies e tietes, mas por buscar entender ao máximo aquilo que me será servido: o propósito da ordem de pratos; o significado de cada ingrediente; referências levadas em conta na criação dos menus...

Em se tratando de Massimo Bottura, é evidente que a reputação precedeu – em muito – o amuse bouche. Há mais de um bom par de anos que a Osteria Francescana, em Modena, figurava em minha lista de coisas a comer antes de morrer. Duas estrelas Michelin*, 4° restaurante do mundo na lista The World's 50 Best Restaurants e um chef com raízes profundas fincadas na região da Emilia Romagna - mas também asas que ignoram solenemente qualquer tipo de fronteira.

O que eu não sabia ainda era que a mulher do chef (Lara Gilmore, uma novaiorquina formada em história da arte) era peça fundamental nas criações de Bottura. Isso explica muito sobre a maestria de Bottura em unir a influência de uma das culinárias mais tradicionais da Itália à inspiração artística quase que onipresente nos pratos da Osteria Francescana.

O dedo de Lara se faz muito presente na ambientação do restaurante, que por fora não passa de  uma fachada discreta cravada no centro histórico da belíssima Modena. No interior, muito branco e cinza. Uma pequena biblioteca, poucas mesas, e a combinação de obras de arte, objetos de design e iluminação deixando claro que a comida ali provoca muito além de prazer e eventuais memórias gustativas. É também meditação.**


O primeiro prato, Ricordo di panino alla mortadella, brinca com o costume emiliano de abrirem-se as refeições com gnocco fritto e mortadella. Sai a pasta frita, entra uma espécie de foccaccia crocante, e no lugar da fatia de embutido, uma leve e aerada espuma de mortadela. Pó de pistache e creme de alho completam o canapé, e a adaptação de sabores comuns a texturas inesperadas dá o tom do jantar que começa a se desenrolar.


Croccantino di foie    Foto:Divulgação

Quem nunca salivou lendo em revistas de gastronomia sobre o Croccantino di foie all'Aceto Balsamico (um picolé de foie gras, em tradução livre e grosseira)? Prová-lo foi como encontrar pessoalmente aquela celebridade deslumbrante das telas de cinema e constatar que a desgraçada é ainda melhor ao vivo. A crosta uniforme são avelãs e amêndoas tostadas. No interior, mousse de foie gras com textura rica e cremosa, como um bom gelatto. Escondido lá no meio, um núcleo precioso na forma de uma gota de Aceto Balsamico stravecchio. Doce, espesso e suficientemente marcante para interagir com os outros sabores, como só 30 anos de batteria podem permitir. (Batteria é o nome dado ao conjunto de barricas onde o Balsamico envelhece segundo métodos ancestrais.)

Palmas para a divertida ironia de servir ingredientes altamente sofisticados em uma versão tão lúdica!



O Tortino di porri, scalogno di Romania, tartufo di Bologna e sale di Cervia foi o prato menos expressivo da noite. Uma pasta longamente cozinhada de alhos porrós e echalotes, trufas bolognesas e um sal célebre das cercanias. Bom, mas nada de espetacular. E se havia alguma mensagem implícita, não fui perspicaz o bastante para captar. Talvez tenha me perdido com a quantidade de locais citados no título. Forse...


    Cinque Stagionature di Parmigiano Reggiano             Foto:Divulgação


Cinque Stagionature di Parmigiano Reggiano
Uma obra de arte minimalista. Um ingrediente, cinco texturas e uma apresentação que parece poesia. Apoiando-se nas diferenças operadas pelo envelhecimento no Parmigiano, Bottura apresenta o mais jovem, de 18 meses, como creme leve, na base do prato. O de 24 meses vem em forma de demi-soufflée, o de 30 é uma espuma, 36 uma gallette. O mais ancião, com 50 meses de idade, é quase etéreo: uma espuma que está mais para ar, de leveza que contrasta com o sabor pungente fruto da maturação avançada. Surpreende descobrir que a técnica base para essa espuma é das tradições mais simbólicas da Emilia Romagna: a Maltagliata di croste di Parmigiano. Consiste em ferver a camada externa do queijo, dura e seca, obtendo-se um caldo rico em sabor (umami, principalmente). Assim, nada é jogado fora, e mesmo na falta de carne, o brodo não perde a graça. Truques da singela cozinha camponesa de outrora sendo homenageados em um prato que mais parece um quadro. Eu vejo uma imagem marinha, a gallette como coral, banhada por espuma do mar e avizinhada por uma concha. E você?

Compressione di pasta e fagioli

Pasta e fagioli (ou massa com feijão) é um prato comum em toda a Itália. As receitas variam um pouco de região para região, mas é basicamente isso: um comfort food nacional. Sensacional como Bottura transformou um símbolo de cozinha singela em uma miríade de sabores e texturas. Mais sensacional ainda como funciona bem! O copinho que se vê acima vem com instruções: cada colherada deve ser levada até o fundo, trazendo de volta um pouco de cada uma das camadas. Na base, um velouté de vitela, seguido por radicchio salteado em vinho (acidez e amargor necessários em meio aos demais ingredientes). Em seguida, mais uma vez a Maltagliata di croste di Parmigiano. Aqui, a crosta foi fervida no caldo de feijão, sendo depois ralada e unida a pancetta. O feijão em questão vai por cima, na forma de puré aveludado. No topo do bicchierino, uma espuma levíssima batizada de acqua di rosmarino faz as vezes do alecrim que costuma aparecer na receita tradicional. Como a erva tem folhas duras e sabor pronunciado, a acqua traz sutileza na textura e apenas uma nota aromática.


O Ravioli di cotechino al Lambrusco e lenticchie brinca com a própria singeleza. Cotechino é um salame cozido. Gordo, até pele do porco leva. Costuma ser servido com lentilhas e harmonizado com Lambrusco, o vinho símbolo da Emilia Romagna. Depois de uma refeição nestes moldes, a siesta é obrigação! Bem, não na versão Francescana, na qual pedacinhos de cotechino são cozidos no vapor de Lambrusco, unidos a poucos grãos de lentilha e transformados em recheio de massa (as masas recheadas são outro clássico regional). Delicado como eu nunca pensei que um prato com estes ingredientes poderia ser.


Costola di maiale nero all'Aceto Balsamico, purea di patate e topinambour
Uma costela de respeito, glaceada por Balsamico e com a carne se desprendendo dos ossos. Dois purês, um de batatas, outro de Jerusalem artichokes (ou topinambo, como a Wikipedia acaba de me informar), e basta. Para quê mais? O grand finale do menu salgado é um manifesto: apóia-se em dois elementos da sagrada trindade emiliana (que além de porco e Balsamico, inclui o Parmigiano), sem arroubos técnicos ou ingredientes inusitados. É o que é, e está ótimo assim. A cena final diz tudo: ossos limpos e talheres cruzados sobre os pratos vazios. Existe sinal mais primitivo e eloquente de satisfação absoluta?


Depois de tanto porco, Parmigiano e pratos conceituais, a sobremesa traz refresco em todos os sentidos. Seguindo um pré-dessert  de gelato de leite de cabra com coulis de pêssego sobre biscoito de ervas e iogurte, vêm à mesa pâte sucrée, gelato de capim limão e zabaglione, mais uma gota de calda concentrada de menta. Detalhe: tanto prato como sobremesa vêm em cacos, como se a coisa toda tivesse sido lançada contra a parede.


Eu costumo esperar dois tipos de sobremesa: em restaurantes vanguardistas, uma cornucópia de elementos que no mais das vezes é excessiva. Parece que o chef pâtissier fica ressentido por ter menos pratos do que a cozinha salgada e resolve usar todas as técnicas que conhece em uma ou duas sobremesas, deixando o pobre comensal tonto e confuso. As boas casas tradicionais, por sua vez, apostam em uma receita só, executada e apresentada à perfeição. (Eu sei, é uma generalização, mas neste caso sou definitivamente old school, e quando gosto de um doce, quero mais do que uma colherada ou gota.) Pois aqui não é uma coisa, nem a outra: sim, temos uma tartelette com gelato e zabaglione, três clássicos, classicamente combinados. Mas temos também um prato espatifado. Não é genial?

Bottura tem o dom de misturar seu amor desmesurado pela Emilia Romagna à sua sensibilidade artística e capacidade técnica. Na cozinha da Osteria Francescana vêem-se as influências de Ducasse e Adrià, de quem o chef foi discípulo, mas vê-se muito mais do que isso. Massimo Bottura é dotado de talento, inteligência, senso de humor e humildade.


O resultado? Bem, além dos prêmios e reputação gozada pelo restaurante no mundo inteiro, eu não vejo a hora de voltar a Modena para provar o Menu Sensazioni.


**A colaboração do casal Bottura/Gilmore pode ser vista no curta Il Retorno, filme lindo e tocante sobre a Emilia Romagna e sua influência na cozinha da Osteria Francescana.




E a seguir, a quem interessar possa, os novos estrelados do novo Michelin Italia 2012:

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