5.10.10

El Bulli: meu jantar no restaurante número um do mundo

Galleta de macadamia: tenra (à esq.) e tostada: quase uma nuvem!
Micro camarõezinhos sobre "tortilla", na verdade um wafer levíssimo
que dissolvia na boca e tinha gosto de... tortilla


Demorei, demorei até que.... a poeira assentou e consegui entender melhor o que se passou comigo nessa recente maratona gastronômica na Espanha. Uma epifania? Não, mais de uma....

Mas falemos do El Bulli, que sei que é disso que mais querem saber.

"E aí, tava bom?"

Impossível responder sim ou não. O que é uma boa ida a restaurante para vocês? A comida tem que ser gostosa? O lugar tem que ser acolhedor?

Digo o seguinte: seria impossível descrever o jantar do último 22 de setembro prato-a-prato, tentando destrinchar a, b ou c, mais ou menos como fiz ao relatar o almoço no Celler de Can Roca. Mesmo porque, antes de ir ao Bulli eu pensei longa e seriamente: o que quero tirar da experiência? Como posso viver aquilo sem me auto-sabotar, sem ficar anotando febrilmente cada sussuro do sommelier, cada objeto não-identificado que ponho na boca? Não queria desperdiçar uma noite mágica tomando notas.

Resolvi erguer as mãos ao alto e não querer controlar demais minha noite. Não consultei antes o e-gullet, o fórum onde doidos como eu trocam fotos e comentários de grandes refeições. Não olhei de novo meus livros sobre o El Bulli. Tentei dar uma marcha-ré, bloquear tudo aquilo que já lera sobre o lugar. Pensei nas sábias palavras do grande chef Juan Mari Arzak:

"Há que se ter capacidade de assombro e olhos de menino"

Pois fui ao Bulli com olhos de menina.

E menina até meio abobada pela importância da ocasião, no táxi o coração ia batendo forte, a cada minuto eu soltava um riso nervoso de excitação.

Do mesmo modo que procurei me despir das armas - não procurar analisar quais técnicas poderiam ter sido usadas em cada estágio do banquete - resolvi que aqui também eu não faria isso. Quem quiser detalhes técnicos saberá onde buscá-los.

Aqui, posso lhes contar o que senti. Senti um cheiro intoxicante de pinheiros e maresia ao chegar. A brisa quente do mar, a maciez dos pedriscos do belo pátio ajardinado à entrada.

Senti a eletricidade no olhar dos outros que ali estavam, todos claramente se sentindo especiais, em um lugar especial, vivendo uma noite especial.

À mesa, senti um mixto inexplicável de polimento à la três estrelas Michelin e descontração à espanhola. Serviço de mesa eficiente porém caloroso, o que ajudou a quebrar o nervosismo inicial.

Os pratos, já disse, não serão descritos e comentados um a um. Mesmo porque me pareceram notas de um concerto. Nada de confusão no prato: um sabor, dois sabores. Poucos elementos de cada vez.


Caviar verdadeiro e caviar falso: qual é qual? Avelãs esferificadas sobre molho de caviar.
E do outro lado, caviar sobre molho de avelã.


Elementos dissonantes, sim. Às vezes até desagradáveis. E ainda mais perturbadores por causa do efeito trompe l'oeil (outro fio condutor da noite). Quando vejo algo que parece um tiramisù, meu cérebro já começa a soltar sinais de "eu quero! delícia!". Então a boca leva o dobro do tempo para entender que não, não se trata de tiramisù. Muito pelo contrário. A decepção é inevitável....

"tiramisú" falso de inspiração japa: soja e tofu. Bem ruim...

Era como se eu estivesse, com a cara a meio palmo da tela, olhando um grande pintor dando suas pinceladas. Umas pinceladas eram mais nítidas, outras menos. Mas nenhuma poderia existir fora daquele contexto. Partes de um todo.

Certas partes achei deliciosas, como os caviares mostrados acima, o incrível crocantezinho de hibisco com recheio de amendoim que parecia papel de seda ao se desintegrar na boca, e, mais tarde, isso aqui:

Endívias cruas e cozidas em papillote (o broto do miolo, não as
folhas maiores), e azeite esferificado

Agora, revendo as fotos, relendo as anotações - ou seja, dando três passos ou cinco para trás, enxergo o quadro completo: belíssimo!

Mas naquela noite, eu via apenas as pinceladas, algumas suaves, mas na maioria das vezes fortes, violentas. Sentimos sabores fortes. Contrastes fortes.

Perceves: rara iguaria da qual não sinto a mínima saudade!


Alguns elementos funcionavam como elo entre as partes, iam aparecendo aqui e ali de formas diversas.

Elementos que me transportaram para um chalé nas montanhas em algum lugar do mundo. Outono.

- vermelhos, laranjas
- caldos, vapores
- cheiro de lareira, especiarias
- tronco, lascas de madeira, castanhas, pinolis, nozes diversas


Lulo (fruta exótica que lembra um macacujá) na grelha: sabor de fogueira


Trouxeram uma caixinha com ramos de pinheiros e mandaram que cada um pegasse um pouco e chupasse. As pontas tinham sido mergulhadas em mel. Gostoso e agradavelmente bizarro! Também trouxeram um sachê para cada um de nós, a horas tantas. Só para cheirar, instruíram-nos. E o sachê me levou de novo para aquele chalé de montanha, com a lareira acesa e a espingarda de caça pendurada ao lado da porta. Minha amiga Marie-Claude guardou o dela na bolsa e sacou três dias depois, enquanto comíamos em outro lugar. Peguei, cheirei. E no mesmo instante fui transportada de volta para aquela noite de outono em Roses.

E lado-a-lado com o outono, que não deixa de ser um preparo para a morte que vem a seguir, tivemos também durante o jantar:
- sangue
- pássaros mortos
- sabores de carne madura, por vezes ferrosos

Pombo com molho de pombo,
e pombo com molho de amora, cacau e gordura de foie. E gergelim negro.




E gelo. Gelo, quem diria! Lasquinhas finas sobre um tartare de tomate. E depois, uma crosta, também muito fina, sobre um prato grosso e pesado de vidro, como um lago quando se congela pela primeira vez na chegada do inverno.

Lago congelado: menta e açúcar mascavo sobre finíssima crosta de gelo
Também notei que vários "pratos" eram bocados leves como nuvens, diáfanos, tão frágeis que tinham que ser levados à boca com o maior cuidado, senão se desmanchavam. E pareciam se desintegrar na boca. Desapareciam, deixando apenas um sabor, uma sensação.

A mais delicada "tortilla" do planeta: quase um nada

Viajei? Pode ser. Mas notem: Adrià não cria pratos como os outros seres humanos. Ele pensa primeiro em um conceito. Uma ideia, em suma. E dali, o conceito toma forma através do ingrediente x ou y. E sendo o meu um jantar composto de conceitos, acho que eu tenho o direito de interpretá-los como o meu coração mandava naquela noite. Justo?

O mais interessante, para mim, foi ver esses conceitos repetidos em dois, três, quatro "pratos". Como se, para usar de novo analogia artística, se tratassem não de pratos únicos mas sim dípticos ou trípticos. Sequências em que os mesmos ingredientes surgiam em interpretações diferentes.

Senti uma sequência nipônica, outra outonal, outra de cítricos e frutos do mar e "mexicanismos". Que iam alterando o ritmo do jantar e o clima à mesa. O outono, definitivamente, trouxe um quê de peso, de intensidade e reflexão (ou terá sido aquele vinho todo?) ;)

Ao final, uma deslumbrante caixa repleta de maravilhosos chocolates e outras mignardises (ou morphings, como ele prefere chamá-las).

Agora, que ando brincando de fazer filminhos, achei que em vídeo eu poderia trasmitir melhor tudo que vi e senti.

E vocês, que acham disso tudo?

ps: eu sei que tecnicamente, o El Bulli já não é o número um do mundo, e sim o número 2, se tomarmos como medida o ranking da revista Restaurant. Mas ao se aproximar do fim de sua era como restaurante, e ao passar para a história, tenho certeza que ele será lembrado assim mesmo, como o #1.


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