Ontem recebi uma simpática mensagem no Facebook da sobrinha da minha melhor amiga, que conheci criança. Dizia assim:
"Não sei se voce lembra de mim, de qualquer jeito te conheci era bem pequena ! Queria falar que sempre vejo seu blog, e a coluna na QG, e acho um maximo! Deve ser muito legal trabalhar com isso. Amo comer e sempre procuro ir a lugares novos!
Parabéns pelo sucesso
Beijos
Stephanie"
Aquilo me pôs a pensar.... sou mesmo garota de muita sorte: vivo de fazer aquilo que amo.
Hoje, por exemplo, tirei o dia para rever fotos e anotações de um dos jantares mais incríveis da minha vida, no restaurante Quique Dacosta, ao sul de Valência, na Espanha. Cada foto, cada página de caderno que eu ia virando me levava de volta para aquela noite silenciosa em que jantei sozinha.
Passei horas sem quase falar, sorvendo cada garfada e gole. Naquele quase transe em que me encontrava, pasma com cada prato que me era servido, refleti longamente sobre minha vida passada "na estrada", comendo; sobre aquele belíssimo e ensolarado pedaço de mundo onde estava, à beira do mar, e sobre a dedicação e imaginação fantásticas de um cozinheiro por quem, depois daquela noite, passei a admirar triplamente.
Nem tive tempo de me sentir só. Talvez porque o serviço ali é dos mais genuinamente calorosos que já vi. Mérito dos eficientíssimos Didier Fertilatti (que dirige o serviço) e José Antonio Navarrete (sommelier nota mil).
Não quero escrever um livro, nem explicar cada prato.
Quero apenas levar vocês pela mão, por quatro minutinhos, a esse lugar surreal que só fez reforçar a minha certeza de que eu não poderia nunca fazer outra coisa na vida.
Antes, para começar, assistam este curto vídeo... depois, vejam as fotos do meu primeiro jantar no Quique Dacosta (acreditem: voltei lá na noite seguinte!!)
Caracol com suas ovas
Kalanchoe y Aceite (folha-da-fortuna com azeite encapsulado em bolinhas)
Kumquat com ovas de tobiko, óleo de avelãs
Tortita nori (salgadinho com alga nori e minicamarões)
Rompepiedra (nome da folha, na verdade, que cura pedra
no rim, quebra-pedra em português). Por cima, ventresca de cavala.
cracker de algas
Matinho da região (raïm de pastor), curtido e servido sobre as próprias pedras onde cresce
("colhidas" em parque próximo)
Nido golondrina (ninho de andorinha) servido sobre palha de palmeira
Três pratos: o quadrado é a mesa de Salazones (peixe, ova de peixe e polvo salgados, fatiados
cerimoniosamente pelo garçom à sua frente, que os traz sobre uma mesa negra sobre rodas)
Ao fundo, "papel de cereais", uma etérea torradinha absolutamente magnífica.
chips de figos sobre folha de figueira
De novo, mesmo prato, um dos mais lindos que vi na vida
Abacate com raspas de caroço de abacate que ralam à mesa! O caldo é como um dashi.
Chufas (Bolinhas ou nós extraídos de uma planta local que parecem-se com avelãs).
Mas, neste caso, era trompe l'oeil. As bolinhas marrons consistem
em foie gras passado no pó de chocolate.
A sopa? De chufas, claro.
Tomate (neve de água de tomate, espuma gelada e pedacinhos de tomate seco)
Piquillo (pimentão). Outro "parece-mas-não-é", na verdade feito
de... melancia! Belo prato irridescente que
lembrava o interior de uma pérola.
Almendra (inspirada na famosa sopa fria ajo blanco)
Vainas (ervilhas)
Ostra servida sobre pedras quentes
Gamba roja de Denia (camarão vermelho típico dali) - parte 3 de uma homenagem à gamba
Gamba roja de Denia (camarão vermelho típico dali)
O prato com todas suas partes: o caldo, que continha um bombom de interior líquido dentro;
o corpo com o rabinho, para ser comido inteiro; as patinhas fritas, o concentrado da cabeça
servido na casca da própria, usada como uma colherinha.
Suquet de algas (era mais bonito ao servirem, depois despejam a sopa quente por cima)
Salmonete (o peixe, assado no papel manteiga, é desembrulhado na frente do cliente).
Servido com vagens e emulsão de uni.
Rocio (Orvalho): granité de caipirinha e, por cima, gelo com gotas de cachaça
Coca d'dacsa (wafer dourado com milho liofilizado)
Coca d'dacsa (wafer dourado com milho liofilizado)
Remolacha (Beterraba)
Tuetano (Tutano)
Cuba libre (musse de foie gras com rum coberta de gel de Coca-Cola), torradas de brioche
Té Matcha (chá verde)
Miel
(bolo-esponja que parece um favo de mel, sobre o qual pingam um fio de mel de laranjeira)
Mateu Casañas, Eduard Xatruch e Oriol Castro, os três chefs que comandavam a cozinha do El Bulli (que como os leitores deste blog estão carecas de saber, fechou em julho passado) abrirão juntos, no fim do mês, um restaurante "sem pretensões" em Cadaqués, cidadezinha lá na ponta da Catalunha, relativamente próxima à baía isolada aonde ficava o El Bulli.
O El Bulli foi o que foi por muitas razões, e uma delas era o poder absoluto que Ferran Adrià exercia sobre seus chefs. Trabalhavam muito, e estavam sempre muito juntos, um fechado primeiro-time catalão que mantinha tudo sob o mais estrito controle. Quem melhor descreveu essa peculiar dinâmica foi a jornalista Lisa Abend, em seu excelente livro The Sorcerer's Apprentices: A Season in the Kitchen at Ferran Adrià's elBulli , que conta os bastidores da mais mítica cozinha do mundo.
Chefs Albert Adrià (à esq.) e Mateu Casañas no El Bulli Foto: Maribel Ruíz de Erenchun
O restaurante do trio de chefs, que se chamará Compartir, focará, logicamente, em pratos para serem compartidos.
Casañas disse ao jornal espanhol ABC que farão cozinha nem criativa nem clássica, mas com um toque pessoal.
E acho também que eles mal sabem o trabalho que dá, nos bastidores, ser um bom restaurateur. Uma coisa é cozinhar. Outra, bem diferente, é ter carisma e tino para negócios suficientes para fazer um restaurante dar certo.
Não sei se eles têm esse segundo talento.
O tempo dirá.
Os três estão abrindo o negócio com a benção do chefe: continuarão trabalhando para Ferran e farão parte da equipe da El Bulli Foundation, quando abrir (sabe-se lá quando). Para quem não sabe o que é essa fundação, eis abaixo matéria a respeito que escrevi para a CASA VOGUE. Cliquem nas imagens que elas aparecem maiores.