27.9.10

El Celler de Can Roca, na Catalunha: o melhor do (meu) mundo




O crítico gastronômico italiano Andrea Petrini, na primeira vez que foi ao Noma, em Copenhague, saiu de lá e ligou para seu amigo Stefano Bonilli, o fundador do guia Gambero Rosso e disse:

"Io credo che io vidi la madonna!"


Pois foi a mesma sensação que eu tive ao final de meu almoço no El Celler de Can Roca, em Girona.

O melhor passeio por uma adega de minha vida, seguido de cinco horas à mesa (22 serviços!). Pelo menos doze vinhos diferentes.

Eu ri. Eu verti duas lágrimas. E parei para pensar, à certa altura, que Deus existe de fato e que graças a ele tenho a grande fortuna de fazer o que faço.

"Io credo che io vidi la Madonna".


E notem que não foi minha primeira vez: eu já saíra encantada de meu primeiro jantar "by Rocas", uns quatro anos atrás. Incrível, inesquecível. Mas os três irmãos - Joan, o chef; Josep o sommelier e Jordi o pâtissier -  indubitavelmente, atingiram o seu ápice de dois anos para cá, no novo endereço, a belíssima casa moderna e envidraçada para onde se mudaram um tempo atrás.





Fica em um subúrbio de Girona, coração da Catalunha - onde o Barça emociona mil vezes mais do que a seleção da Espanha - coisa que não podia ser mais evidente ao bom observador...



Mas não falemos de política. Voltando à comida: a um ateu, eu perguntaria: pois de que outra forma poderia explicar que, por obra do destino, eu tenha tido minha melhor refeição justamente no último dia? Foi um fecho com chave de diamante, mais do que eu jamais poderia esperar.

Marie-Claude e eu chegamos à 1:30 em ponto e Joan Roca em pessoa já nos esperava à porta. Sempre elegantemente discreto, um gentleman. Nos levou para vistar a vasta cozinha, com área só para sous-vide, e uma grelha insipirada no mítico Extxebarri, de combustão lateral (as brasas à esquerda, a grelha à direita, dá pra ver lá no fundinho, na foto abaixo).

Photo: Marie-Claude Lortie


Em seguida, apareceu seu irmão mais novo Josep, ou Pítu para os mais íntimos, tido por muitos como o melhor sommelier da Espanha. Seguimos Josep até a adega, e logo ele começou a falar de seus vinhos favoritos, ajudado por um esperto sistema audiovisual que ia mostrando em telas planas imagens dos vinhedos que ele ia descrevendo, de maneira tão apaixonada e poética que me deixou sem palavras, profundamente tocada. Seria impossível transmitir a sensação do que testemunhei naquele momento. Piegas, eu sei, mas... fazer o quê? Não digo nada além da verdade. Eis a prova:





Já meio balançada, sentei-me à mesa, olhei ao meu redor e, mais uma vez, fiquei boquiaberta. De (muito) longe o salão mais belo e tranquilo e inspirador desta viagem. Forma uma espécie de triângulo em cujo centro há um canteiro de árvores rodeadas de lascas de pedra cinza-escuro. Uma ou outra folha amarelada pelo outono caía lentamente, o sol manchando de branco-brilhante os magros troncos rajados. Belíssimo.



Nem sequer nos trouxeram menus: estava claro que não chegaríamos ali com a vã intenção de querer direcionar o andar de nosso almoço: estávamos em boas mãos.

Depois de tantos anos escrevendo sobre restaurantes, tenho um sexto sentido que me permite, já à hora do amuse bouche, perceber o que mais vem pela frente. E meu instinto já dizia - ou gritava! - que estava por vir algo absolutamente fantástico.


Já na partida se percebia o incrível capricho. Imaginem que trouxeram à mesa um lindo bonsai - de verdade! - que tinha, pendendo de seus galhos, azeitonas recheadas de anchovas, com fina crosta caramelada e quebradiça. Era um cartão de boas-vindas comestível, que representava o salgado (domínio de Joan Roca) e o doce (do qual se encarrega o caçula Jordi Roca).






Que gesto bacana, e… que azeitonas!

Logo depois, uma garçonete surgiu com outras duas bolotas vermelhas em uma tigela: "Bellini", disse ela. Purê de pêssego da mais alta qualidade, geladinho. Plóc! E tudo se liquefazia na boca. Nham.





Em seguida: as mais finas hóstias de batatas chips ensanduichavam um creminho de frango.


À esquerda, "omelete" de arenque defumado e caviar. À direita, parfait de pombo.



Estavam incríveis as espinhas de anchova fritas em tempura de arroz (era quase um torresminho do mar, textura  parecida), e, sobre a mesma "rede de pescador", um naco de peixe com um recheio de algo picado e frito, também incrível.


Isso tudo, claro, não passava de aperitivo..... e ainda tinha um brioche com porcini "ao caldo de pot au feu" que, para mim, parecia um steamed bun à la David Chang com forte sabor de trufa.


A primeira entrada:


"Ostras com cava Agustí Torelló, compota de maçã, gengibre, abacaxi, limão confit e especiarias"






Sim, era outra delícia. Mas sabem o quê? O que mais encantou foi o "prato", praticamente uma escultura em vidro que lembra uma meia garrafa de vinho, porém tem formas mais arredondadas. E detalhe: o vidro estava geladíssimo, outro cuidado a notar. Ao servir, o garçom despejou sobre as ostras e os micro pedacinhos de maçã e abacaxi uma cava com consistência de geléia, quase, feita sob encomenda, em cujo translúcido gel viam-se as borbulhas em suspensão. U-au.


"Escalivada com anchovas e fumaça de brasas. Beringela, pimentão, cebola e tomate na grelha".






Se me perguntarem como foi que os legumes grelhados viraram bolotinhas engruvinhadas, respondo a verdade: não tenho ideia. Mas iam muito bem com o líquido onde nadavam pecadinhos de anchova. E que delicioso aroma de brasas! A tal grelha lateral valeu cada euro de investimento.... ;)


"Figo com foie gras"

Photo: Marie-Claude Lortie


Nem vou descrever muito, porque está na simplicidade do velho casamento figo e foie a magia dessa entradinha. O creminho era puro foie, e o pedaço de figo vinha com uma fina manta gelatinosa.



"Camarão gigante (gamba) na grelha"




Engraçado ouvir a "sugestão" do garçom: "coma o corpo depois chupe a cabeça". Dito, e feito - com gosto! E notem que a gamba ia bem além de mera gamba: em primeiro plano, uma "areia" representando a praia onde são recolhidas pelos pescadores, que tinha gostinho, adivinhem? De gamba claro!


"Sopa de cebolas, nozes Crespià (walnuts) e queijo Comté"









Cebola e queijo (e Comté, ainda por cima!), juntos: há coisa melhor? Sim, há: essa sopinha com pedacinhos de cebolinhas francesas e minipepitas de noz envoltas em caramelo quebradiço, fazendo perfeito contraponto com o suave amargor da sopa.

"Cigala (cavaquinha) da Noruega cozida no vapor de Amontillado"



Só esse prato mereceria um post à parte.... Vou resumir: a tigelinha da esquerda contem uma rocha e chega à mesa pelando. Sobre ela, uma espécie de peneira fina, onde pousa o corpo de uma cigala, cru. O garçom verte um Amontillado que imediatamente levanta fervura. Põe-se uma tampa, de modo que aquele vapor quentíssimo de jerez cozinhe a bichinha. Genial!

Ao lado, uma sopinha  feita de sua cabeça, lembrando uma bisque sem creme. E numa colherinha ainda vem um caramelo de Oloroso. Uma cozedura incrivelmente delicada, de um instante. Parece fácil, mas um escorregãozinho qualquer pode fazer esse prato naufragar - como por exemplo deixar que a tigelinha espere muito até chegar à mesa, perdendo parte do calor.

Ah, sim: até aqui sequer mencionei os vinhos servidos, o que é grande injustiça mas, sinceramente, trata-se de um post e não um tratado. Mas não posso deixar de contar que, entre vários verdadeiros tesouros, serviram naquele ponto um jerez oloroso raríssimo e antiquíssimo (Amontillado Coliseo V.O.R.S Valdespino D.O. Jerez) com as palavras: "los recomiendo que hagan sorves muy pequenos para que no sea mas potente que el plato." O Jerez é basicamente salgado, muito especial e intenso.



"Linguado, azeite e sabores do Mediterrâneo: erva-doce, bergamota, laranja, pinoli e azeite"




Sente-se o aroma da grelha, cuisson do peixe, mais uma vez, im-pe-cá-vel. E cada risco de cada cor super rico em sabor. E a bolinha de azeite, embora se pareça com a famosa encapsulação by Ferran, na verdade tem uma crosta quebradiça e doce.

"Lulinhas com onion rocks"




A "ilha" negra ao centro não é de pedra, mas sim um naco de um bolo esponjoso feito segundo técnica do El Bulli (poucos segundos em copo plástico no microondas). Era bom esse prato, mas achei que o caldo lembrava demais a sopinha da cigala...

"Red mullet (trilha) com suquet (um cozido de frutos do mar catalão) e banha"

Photo: Marie-Claude Lortie


Aqui neste ponto, confesso, já me concentrava menos e comia menos. Mas há que se dizer: era outra perfeição. Domínio total da cuisson. E não, não são batatinhas mas sim.... uma espécie de gnocchi de banha!


"Steak tartare com sorvete de mostarda"



De novo, o nome oficial do prato esconde todo um universo de diversos elementos, quase tão numerosos que não se pode listar…. A carne vinha coberta com alguns glóbulos esbranquiçados do tal "sorvete de mostarda", mas o que se sentia mais era o crocante das batatinhas suflês, cada qual passada em uma especiaria ou tempero: ketchup caseiro, béarnaise... a de pimenta scheshuan era especialmente saborosa, mas todas traziam o mesmo crunch para contrastar com a untuosidade da carne fria. Folhinhas de mostarda para completar. Este é o que todo tartare de carne quer ser quando crescer!

 

Cordeiro com terrine de pêssego e abricot





Confesso que a esse ponto comecei a sentir fadiga mental e física - prestei pouca atenção na explicação e fui logo comendo. Cordeiro e pêssego fazem um casamento perfeito - adoro essa carne combinada com quase qualquer coisa doce, tanto faz se é mint jelly ou uma crosta de amêndoa confitada (dragées), como fazia Alain Passard do L'Arpège. Pêssego e abricot, então, nem se fala: covardia. E mais um crisp da pele, e um bocadinho do que parecia ser purê de batata. Mas... será?!






E para limpar o palato.....  me lembrou Tico e Teco! Mas falando sério: de uma beleza singela essa "noz" congelada, não?







"Sanduíche de pele crocante de porco ibérico e melão"




E não é que de repente recuperei meu apetite com toda força?! Quem é fã de leitãozinho à pupuruca, como eu, só pode mesmo ficar maravilhada. A pele, de um marrom dourado, absolutamente plana e crocante, o melão do "recheio" morninho e mole, cozido à vácuo. Minhanossasenhora....

"Sorbet de limão destilado"






De novo: um prato tão incrivelmente mais complicado do que a descrição…. A gota alaranjada da foto tinha gosto de beurre noisette.  Cubinhos de bolo. Uma água aromatizada com rosas. Uma "neve" de leite de limão. E uma granité minute, mais conhecida como raspadinha, feita com a pele do limão (mas sem qualquer amargor, o processo é bem complicadinho e não vou entediá-los com a explicação….). Sabor intenso de limão, mas sem a acidez da fruta. E um toque floral. Sobremesa para calar os tontos que dizem que "gastronomia molecular é coisa de laboratório". Técnicas muito avançadas são usadas para simplesmente traduzir o limão em seu mais puro estado e sabor.




"Milk dessert"



Nuvem de chantilly do mais fresco leite de ovelha, ali de perto, coroada com algodão doce e uma fatia geladinha de algo que parecia picolé de goiaba. Ou seja: Romeu e Julieta! A pior foto,  mas... um dos melhores pratos! No fundinho, doce de leite.
A sobremesa foi elevada à décima potência pela lírica descrição feita pelo Josep, com direito a efeito sonoro: passando uma colher pelas ranhuras do prato emitiu-se um som que lembrava os sinos das ovelhas. Foi aqui que não resisti: lágrimas escorriam pelo rosto, um sentimento da mais profunda admiração pela sensitividade - tão rara! - revelada por Josep:

"L'idée c'est la tendresse. Un seul produit, profondeur de saveur. Le lait de brébis vient d'un petit village près de chez nous, et on peut écouter leur cloches" (aqui, Josep fez tocar os "sinos" imaginados)



"Baunilha, caramelo, alcaçuz, azeitonas secas e caramelizadas"



Os elementos neste prato são aqueles que os irmãos encontram na baunilha: notas de azeitona, alcaçuz... O sorvete? Baunilha vezes dez. Literalmente. Usam dez favas de baunilha ao invés de uma para atingir o nível máximo de "baunilhidade" e - diz o Josep - fazer sobressair seu fundo de amargor, embora naquela sobremesa não houvesse nada que me parecesse amargo. Era quase um broche de alguma galerista excêntrica, com cubinhos minúsculos e irridescentes, marrons profundos e um emaranhado de azeitona no topo. Grande complexidade.


"Gol de Massi"
Dois marshmellows que "marcam" os jogadores que Massi, do Barça, driblou. Ele partiu desde antes do meio campo e foi passando um, dois, três, quem estivesse na frente até fazer o gol.
Esse não mostro: quem quiser entender melhor pode ver este outro texto, que postei no portal da ALFA: foi o clímax de não só do almoço, como de toda a viagem.

Ah, sim, e aqui a lista de vinhos que acompanharam o almoço, um mais interessante que o outro. Meu maior coup de coeur: Nun, um super branco do Penedès, "irmão mais velho" do Improvisaciò.

 


E chega, que eu não posso escrever um livro sobre um "almocinho de sábado" sem matar vocês de tédio!

Cenas dos próximos capítulos: El Bulli.


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