Minha última coluna na
Folha falava sobre livros.
Mas só hoje fui ver que a
Phaidon, que disse ser a mais prestigiosa editora de livros de gastronomia, foi escolhida para a lista de "Tastemakers" (formadores de opinião) da revista Bon Appétit para 2012. Eles pelo jeito viram o mesmo que eu: a editora está com tudo.
Bom ver que mesmo em 2012 e com toda essa onda de iPad iPhone e iTudo ainda tem gente suficiente comprando livros e engordando a conta de editoras como a Phaidon. Longa vida aos livros de papel!
E a seguir, eis o primeiro rascunho do que veio a ser a coluna publicada (editada e bem mais curta) no
Comida:
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Novo livro do Martin Picard, lançado semana passada |
O gentil gigante Martin Picard, caçador e incentivador da chamada cozinha nose-to-tail, é idolatrado por cozinheiros dos dois lados do Atlântico. O chef televisivo Anthony Bourdain declarou famosamente que seu restaurante Au Pied de Cochon em Montréal “é uma ode ao excesso, não hesito pegar um vôo de Nova York só para comer lá”. Dada a legião de fãs, não surpreende que o novo e já controverso livro de Picard,
Cabane à Sucre Au Pied de Cochon, seja iconoclasta como o autor.
Há desde sua patissière posando nua em uma banheira de maple syrup a uma receita de sushi de esquilo; centenas de fotos passo-a-passo de como preparar receitas doces e salgadas a demonstração de como se arranca a pele de um coelho. Grotesco ou artístico? Sexual ou didático? Picard adora confundir e desafiar convenções.
Desde que o mundo é mundo – ou desde que saiu o primeiro dos cinco volumes da enciclopédia L’Art de Cuisine Française, de Marie-Antoine Carême, em 1833 - chefs publicam livros com suas receitas. Uma busca por “Mario Batali” na livraria online Amazon faz aparecerem dez títulos publicados pelo cozinheiro-celebridade. O escocês Gordon Ramsay tem mais que o dobro disso: 23! A grande maioria fica só nisso: livros de receita. Já o de Picard soma-se a outro time: o dos chefs que definem seu estilo e demarcam território através da palavra impressa.
O pioneiro, como de hábito, foi Ferran Adrià, que revolucionou o mercado editorial ao lançar em 1993 seu primeiro “catálogo geral”: El Bulli 1983-1993. Aquele catatau de capa dura listava cada prato criado pelo catalão e seu time, com descrição técnica e foto – e até um DVD! A partir daquele momento, podiam copiar o quanto quisessem, que a autoria dos conceitos e combinações já tinha sido explicitada... “Havia muitos livros que davam receitas (...) mas poucos centravam na análise de estilos, de métodos de criar. O catálogo representou uma vontade de codificar nossa cozinha do ponto de vista teórico, atitude que prosseguiu nos livros seguintes”, diz Adrià.
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revista Lucky Peach do chef David Chang |
Demorou muito até surgirem outros lançamento verdadeiramente notáveis, até de repente abriram-se as comportas. Nunca se viu tamanho bombardeio de grandes lançamentos de chefs, cada qual procurando fazer algo totalmente novo. David Chang, chef-proprietário do Ko e outros restaurantes Momofuku, quis inventar uma revista pensada para iPad mas desistiu. Sua descoladíssima
Lucky Peach, impressa e vendida online, sai quatro vezes por ano e faz enorme sucesso.
René Redzepi, dono do restaurante cotado número um no mundo, o Noma, em Copenhague, mandou ver com o
Noma: Time and Place in Nordic Cuisine, lançado em 2010. Um livrão com a sua cara: fotos de pratos nus e crus intercalados com paisagens gélidas, e um diário personalíssimo como introdução, acompanhado de mapa. Foi lançado com grande pompa em megaevento na Sydney Opera House, na Austrália – vendiam-se ingressos só para ver o chef falar! - e na sequência Redzepi fez turnê mundial assinando autógrafos. Hoje, publicar algo com a Phaidon, editora dele, tornou-se o maior prêmio ao qual um chef de renome pode aspirar. Pelo menos dois conseguiram: em maio sai o livro de
Andoni Aduriz, do Mugaritz na Espanha, e em outubro, o de
Alex Atala.
O verdadeiro divisor de águas, no entanto, é outro: a série Modernist Cuisine, último status symbol entre foodies. Custou anos e fortunas para ser produzida pelo milionário Nathan Mhyrvold (que não é chef mas amigo de todos os que importam) e jamais será batida nos quesitos peso (um homem não consegue carregar os cinco volumes sozinho!), aprofundamento técnico e beleza fotográfica. A cada vez que consulto um dos volumes aqui em casa, assusto-me com o peso de todo aquele papel lustroso. Aí está a grande ironia: cozinheiros caminham na contra-mão da migração do papel para o digital, como se buscassem, ao retratarem-se em livros que acumulam pó na estante, a permanência.