Escrevi recentemente, a pedido da revista Wish Report, um curto texto contando porque gosto tanto do Kinoshita, o restaurante japonês da Vila Nova Conceição, em São Paulo. Como sei que muita gente de Portugal lê este blog e busca boas dicas para futuras idas ao Brasil, achei que seria o caso de reproduzir aqui o que saiu publicado na Wish.... Lá vai:
Conheço o sushiman Tsuyoshi Murakami (ou Mura para os de casa), do Kinoshita, de outros carnavais. Se hoje vejo o sorrisão largo dele em tudo o que é revista, quando eu ainda começava na carreira de crítica gastronômica ele era o segredo mais bem-guardado de São Paulo. Servia menus-degustação só para os muito bem-informados, num restaurante da Liberdade cafoninha, igual a tantos outros do bairro. O restaurante era do seu sogro e servia combinados normaizinhos pra uma clientela normalzinha. Mas quando uma mesa soltava as rédeas e pedia a ele que servisse o que quisesse.... era um estouro, uma orgia de sabores, uma sucessão de pequenos mistérios encasulados em conchas ou nadando em caldos não-identificados. O negócio dele nunca foi ficar no sushi e no sashimi, mas sim embasbacar as pessoas com sua cozinha japonesa autoral, sempre original e deliciosamente estranha.
Se na Liberdade ele fazia seu show pra poucos e bons, no novo endereço na Vila Nova Conceição Mura virou a grande atração e tem que se dividir em mil pra atender às multidões. Mesmo assim, ainda se lembra bem de quem já era cliente e fã na era pobrinha.
“Faaaaala, cara, porra, quanto tempo, hein?”, exclama ele quando me vê sentar no balcão da nova versão luxe do Kinoshita. Cabelo espetado pra cima, gestos largos, sorriso no rosto, Mura é expansivo e bonachão e adora um palavrão (ele tem sotaque carioca e já morou em Tóquio, Barcelona e Nova York).
Nunca peço para ver o menu: sinal de confiança absoluta. E acabo adorando quase tudo. Exemplos? O tonkatsu feito com filé mignon ao invés de carne de porco, uma rodelinha frita à milanesa, coroada com um naco de foie gras. Faço festa também quando ele me serve seu caldo de peixe (Dobin Mushi) numa linda chaleira. Sim, só isso: caldo. Sem nada além de um susto de Yuzu. Mas... que caldo! Sintetiza tudo o que há de melhor na cozinha japonesa: sutileza, mar, sal.
Ele me serve o que quer, desde que não me faça passar sem pelo menos um temaki. Sempre acabo pedindo, e ele nem titubeia:
“Claaaaaaro, é pra já, que tal de buri com shissô?”. Aos não iniciados ele costuma dobrar e partir ao meio uma folha de alga seca, como se fosse um show de mágica, aproximando-a do ouvido:
“Tá vendo só? Crocantinha, faz até barulho”.
Qualquer temaki saído das mãos dele é impecável mas quando bate a saudade eu peço aquele que eu comia lá no velho endereço, de carne e rúcula. Ao invés de shoyo, gotinhas de um mosto de uva trufado. Pequeno o bastante para ser devorado num lance, passa das mãos deles para a minha em dois segundos, o que garante que alga ainda esteja sequinha e faça um gostoso créc-créc ao ser mordida.
“Tem que fazer bocão, hein? Bocão pra o temaki ficar crocante do começo ao fim, cara!”, diz Mura.
Definitivamente, aquilo é um pedaço de céu.
Pra quem não conhece o restaurante, segue um repeteco do relato do meu último almoço lá:
Iniciamos os trabalhos com ovas de tainha marinadas em saquê, servidas sobre uma “concha” de limão.
Pra acompanhar, cerveja. No início me trouxeram uma feita usando o método champenois (!!!), chamada
Lust, caríssima. Achei uma bobagem e pedi uma Cerpa.
E aproveitando, um recado pros produtores da Lust e redatores de menu paulistanos: não existe método champenoise, no feminino, e sim champenoiS!
O método, masculino. Em francês,
la méthode champenoisE, feminino. O.k.?
2 Tairagai, um molusco importado do Japão, cortado em três e temperado com molho yuzu (tem gostinho de limão). Uma confissnao: achei o molho ainda melhor que o molusco…
3 Ovas de tainha de novo, mas desta vez comprimidas, como bottarga italiana. Depois enroladas em fatias finíssimas de nabo japonês, com uns brotinhos pra dar uma cor. Incrível contraste de texturas. As ovas (“bottarga japonesa”) não são a coisa que mais amo no mundo, têm um sabor bem forte e salgado e dão uma sensação estranha ao mastigar, mas neste contexto gostei bastante…
4 Saladinha com nacos macios de polvo cozido no ponto exato, broto de feijão e barbatana de tubarão. Tenho dó de comer barbatana depois que vi um documentário bem chocante sobre o sofrimento dos tubarões que são mortos só pros orientais tirarem a barbatana (o resto é jogado fora). Ainda mais porque não tem muito gosto, funciona mais pra dar uma textura ultra-interessante, mas… o que não faço em nome do trabalho? ;)
A mistura, temperada com molho ponzu e azeite, era simplesmente deliciosa, fazia crec crec na boca e era levíssima.
5 Chu-Toro (o irmão menos nobre do O-toro, o melhor pedaço do atum). Preciso dizer mais? Ah, sim: wasabi ralado na hora. Uma manteiga!
6 Caldo de peixe (Dobin Mushi) servido numa linda chaleira. Só isso. Sem nada além de um susto de Yuzu. Mas… QUE caldo! Simplesmente o highlight do almoço. Melhor até que o chu toro! Aquele caldo conseguia sintetizar tudo o que há de melhor na cozinha japonesa: sutileza, mar, sal. E uma quase imperceptível pimentinha no final.
7 Sushi. Perfecto. Linguado, pargo (com folha de shissô), buri (meu favorito), salmão bem gordo, e mais chu toro, com flor de sal salpicada por cima. E o shoyu “da casa”, que é tão delicioso que dá vontade de tomar puro. Nham nham.
8. Fígado de monkfish (peixe-sapo), com pimentinha e, pra contrastar, pepino bem fino e bem gelado. Bem bom, mas vindo depois de três maravilhas acabou sendo meio anti-climático.
9. Mero marinado, com dois talos de aspargo bem al-dente. Outra delícia. Servido na louça mais linda, trazida há pouco do Japão por eles.
Em seguida ao peixe veio um dos highlights do banquete: carne Wagyu produzida obviamente seguindo os métodos japoneses, mas no interior de São Paulo. Nem dá pra dizer que foi grelhada: apenas tomou um susto no calor. M-A-R-A-V-I-L-H-A!
11. Um arroz com enguia gema de codorna super gostoso que, àquela altura, passou meio batido. Não aguentava mais comer!
12. Sorvete de lichia. Bom, mas tinha um cristalzinho ou outro de gelo – e sou chata com isso. E pareceu simples demais depois da complexidade de sabores dos pratos salgados…
Ainda bem que a Suzana, mulher do Mura, delicada como uma bonequinha de porcelana, tinha tido a gentileza de me dar de presente uma caixinha de brigadeiros de chá verde feitos por ela mesma horas atrás. Eram melhores do que o sorvete! Acho que a sobremesa do menu deveria ser trocada…. pelo brigadeiro da Suzana…
Gostei tanto que voltei alguns dias depois, pra jantar com amigos.
E não é que nos serviram um menu degustação completamente diferente?! Não queriam que eu comesse a mesma coisa de novo, explicaram… e eu fiquei só na vontade de repetir aquele caldo dos deuses… Mas naquela noite experimentei uma sobremesa absurdamente boa. Era aquele docinho típico japonês envolto em uma massinha macia e sedosa de farinha de arroz. Dentro, ao invés do clássico doce past oso de feijão, havia um recheio de chocolate. In-crí-vel. Eu comeria dez bolinhas daquelas, fácil. Pena que só veio uma… O sorvete de chá verde combinava muito bem. E a apresentação, então? Uma obra de arte!
Por essas e outras, o Kinoshita é meu japa favorito em São Paulo. Caro, sei que é. Esse menu degustação custa 180 reais por pessoa (pelo menos mantiveram o mesmo preço cobrado quando inauguraram). Mas ninguém é obrigado a gastar tudo isso – vejam como exemplo os menus do almoço:
Resumindo: sei que tem gente que reclama do preço, mas eu acho justo pelo que é. Tô com o Mura e não abro.
Kinoshita: Rua Jacques Félix, 405, Vila Nova Conceição, tel. 11 3849-6940.