12.9.11

Chef Gastón Acurio, o Peru e a identidade gastronômica: reflexões antigas, revividas



Estou sem tempo algum de escrever longos posts, por estar passando cada hora do dia mergulhada na fascinante e impressionante feira gastronômica Mistura, aqui em Lima.

 

Não quero perder nada, e, acreditem: há todo um MUNDO a ser visto, muito maior do que eu jamais poderia imaginar, apesar de já ter ouvido relatos de chefs e amigos que já tinham vindo ao evento no ano passado.

Prefiro não entrar em detalhes por enquanto, mas tenho que dizer que estou muito triste com os ataques que venho recebendo no Twitter de pessoas que, equivocadamente, pensam que não aprecio o Peru e sua gastronomia. Acho grande ironia, considerando que desde que pus os pés em Lima tenho transmitido, por fotos e tweets postados em tempo real o meu entusiasmo e fascínio pelo que ando vendo aqui.

Os ataques me fizeram pensar. E ao puxar pela memória, lembrei-me de um texto que escrevi em 2009, publicado na revista WISH. Alguns detalhes já estão desatualizados, mas a essência do que está dito ali ainda vale. É um tanto longo, peço desculpas. Mas postá-lo aqui talvez sirva para esclarecer que não é de hoje que admiro imensamente não só o Peru como seu povo, seu maior embaixador - Gastón Acurio - e sua rica gastronomia. Lá vai:

O chef Gaston Acurio, no palco do Mistura, em Lima


  Por que demoramos tanto para perder a vergonha de comer rapadura e farofa? Nos anos 80, Laurent Suaudeau e Claude Troisgros descobriram, encantados, tudo aquilo que nós brasileiros já conhecíamos e comíamos em casa, mas achávamos jeca. Aos poucos, os dois deram início a uma verdadeira revolução da alta gastronomia verde-e-amarela. Em 82, Suaudeau fez seu primeiro purê de mandioquinha. Depois usou jabuticaba em molho para pato, e pôs milho verde no nhoque. Troisgros, na mesma época, criou um kir com licor de jabuticaba no lugar do cassis e serviu peixe com molho de maracujá. A dupla francesa deu o que falar, mas por muito tempo permaneceu isolada, com sua predileção por ingredientes tropicais considerada pela maioria como “excentricidade de gringos”. Só de cinco anos para cá a coisa começou a mudar de figura.

   A certa altura, o restaurante D.O.M. passou a ganhar prêmios mesmo servindo PF no almoço e peixes da amazônia no jantar. Morena Leite mudou-se de Trancoso para cozinhar pratos baianos-chiques no Capim Santo, em São Paulo, diploma do Cordon Bleu debaixo do braço. Helena Rizzo, de volta de longa expedição à Espanha avant-garde dos irmãos Roca, gênios modernistas, pingou azeite de trufas sobre mandioca e tucupi em seu Maní. E casou uma terrine de foie gras com cubinhos de gelatina de cachaça, castanhas-do-Pará e goiabada. De repente, virou moda hastear a bandeira da brasilidade.

  Mas a onda é recente. Enquanto isso no Peru...

  O mesmíssimo preconceito contra os ingredientes nativos reinou durante muitos anos. O ají amarillo (pimenta amarela suave), a quinoa, frutas como maracujá, aguaumanto, mamey e chirimoya – tudo isso era visto como comida dos criollos.  As três vertentes da cozinha nacional – chifa, de influência chinesa; nikkei, dos imigrantes  japoneses, e criolla, dos andinos – eram apreciadas só nos botequins e nas casas de família. Jamais nos bons restaurantes. Só que lá a maré virou mais cedo....

  O mérito é de Gastón Acurio, a grande estrela da gastronomia peruana. Um filho de político que cursou Le Cordon Bleu e casou-se com uma pâtissière alemã. Em 94, abriram em Lima o Astrid y Gastón servindo cozinha francesa. Em 96 puseram, pela primeira vez, ají no cozido de carne e introduziram ceviche e tiradito no menu. Três anos mais tarde, o restaurante já não tinha nada de francês. O Peru, na mão de Acurio, virava grife.

  O homem é um furacão. E, praticamente sozinho, encarregou-se de levar ao mundo a cozinha peruana. E não é que a estratégia megalomaníaca tem dado certo? A conta já passa de 40 restaurantes. Quarenta! Cidade do México, Santiago, São Francisco, São Paulo, Caracas, Madri. Em breve, Dallas e Nova York. E Lima, claro, onde tudo começou.

O chef Alex Atala admirando a festa, no Mistura


   A grande sacada de Acurio foi separar a gastronomia peruana em capítulos. Nas várias cevicherias La Mar ele faz... ceviches. No novo Panchita em Lima serve anticuchos, que são espetinhos. Na T’anta e suas filiais a especialidade são os doces e salgadinhos. “Já vi sites taxando Gastón de megalomaníaco e dando a entender que ele fez uma rede de comida étnica pasteurizada”, diz Bruno Faro, ex-sous-chef de Flávia Quaresma que está estagiando em dois restaurantes de Acurio em Lima. “Mas brasileiro não conhece a comida peruana, qualquer um que saia comendo pelas ruas no Peru verá que ele só faz aprimorar a verdadeira cozinha típica”.


Anticucho (espeto) de coração de vaca, no Mistura


   Gaston não foi o primeiro – só o mais audaz e ambicioso. Já em 1992 existia um minúsculo restaurante de seis mesas chamado El Comensal, fundado pelo crítico gastronômico e jornalista Bernardo Roca Rey. Ali, sim, surgiu o que viria se chamar de cozinha novo-andina. Tudo o que jamais tinha sido utilizado num restaurante fino entrava naquela despensa: cuy, o leitãozinho dos andinos pobres; folhas de coca, que,  maceradas, eram usadas no coquetel coca sour; quinoa, o grão que deu origem ao “quinotto”, um risotto sem arroz; e assim por diante.

     O Comensal fechou, mas o movimento que havia desengatilhado continuou a tomar corpo. Discípulos abriram negócios próprios e difundiram o evangelho novo-andino. Em Lima, há o Malabar, de Pedro Schiaffino; em Montreal, o Raza, de Mario Navarette. Emanuel Piqueras foi para Oregon, nos Estados Unidos, e inaugurou o Andina, que logo começou a ganhar prêmios. Isso para não falar do Nobu, que apresentou o tiradito – misto de carpaccio e sashimi - aos americanos e emprestou à cozinha nipo-peruana uma patina de sofisticação globalizada. Tanto no original, no Tribeca novaiorquino, como nas tantas filiais que foram abertas na sequencia. Até Maceió tem seu novo-andino, o Wanchako. Resultado: difundiu-se a tal da cozinha novo-andina a ponto de criar uma imagem de Lima como meca gastronômica. A cidade foi proclamada a nova capital foodie mundial primeiro pela Gourmet, em 2006, e depois pela bon Appétit, em janeiro deste ano.

   “Lá fora, a cozinha peruana é mais conhecida que a nossa, que fica reduzida a rodízio e feijoada”, diz Alexandre Miqui, dono do primeiro restaurante peruano de sucesso em São Paulo, o Shimo. Miqui tornou-se sócio do mestre em pessoa: abriu com Acurio o primeiro La Mar em solo brasileiro, no Itaim. E pretende reproduzir a fórmula em várias cidades brasileiras.

   Acurio pensa grande: quer, simplesmente, fazer a cozinha peruana tão conhecida no mundo quanto a japonesa ou a mexicana. Ele diz que em dez anos Lima será como Paris: uma cidade aonde as pessoas irão só para comer. Pelo andar da carruagem, não duvido nada.

E mais Peru e Gastón Acurio:


Chef Gastón Acurio e seu grito pela proteção da cultura gastronômica e da biodiversidade de cada país - com vídeo


Coluna na Folha: o Peru, o chef Gastón Acurio e o evento gastronômico Mistura


Mesas com guarda-sol no evento Mistura

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...