Albert e Ferran Adrià, no Tickets, em Barcelona: a vida pós-El Bulli Foto: Divulgação |
PAREM!! Este é um AUDIOPOST. Não leiam este post sem antes apertarem play no vídeo abaixo....
Hoje, quero falar do 41 Grados.
Estive lá jantando, no finzinho de outubro.
Nem nas semanas antecedentes, nem depois, não contei pra ninguém.
Não queria dividir, não queria que o sonho se evaporasse, que o meu lugar marcado desaparecesse, que os blogs começassem sua tagarelagem.
Apenas marquei a data do jantar e esperei, ansiosamente.
A fachada do 41 Grados, em Barcelona. Foto: Pagenaute |
Eu sabia que o ex-bar já não seria mais bar. Que os antigos aperitivos-malucos do 41 Grados tinham sido defasados, substituídos por um senhor menu degustação de 41 pratos.
Mas queria que fosse o meu segredo, enquanto durasse. E, aliás, me surpreendo que a ficha ainda não tenha caído para mais gente.
Poucos se deram conta do que rola ali naquele endereço. Logo logo, algum jornalista gringo vai escrever uma crítica embasbacada e a boiada vai seguir. Enquanto isso......
Bom, voltando a minha viagem: fui jantar lá para escrever para a Folha. E como todo bom jornal, a Folha resumiu muito o relato daquela noite, porque no caderno Comida mil e uma reportagens brigam pelo mesmo espaço. Normalíssimo.
Mas agora, já passadas duas semanas - embora ainda sinta ecos daquele jantar que tanto mexeu comigo - achei por bem postar aqui o texto original que escrevi, com alguns detalhes a mais. Lá vai:
Chef Ferran Adrià, na noite de encerramento do El Bulli |
Pouco antes, abrira com sócios-investidores em Barcelona o Tickets, um restaurante casual, e no imóvel anexo, o 41 Grados (www.41grados.es), um pequeno bar especializado em coquetéis e aperitivos vanguardistas, dirigidos por seu sócio, irmão e braço-direito Albert.
Albert Adrià Foto: El Bulli |
Amendoins miméticos delicadíssimos e molinhos por dentro: nada é o que parece |
"Azeitonas recheadas": não são azeitonas, mas têm gosto de azeitonas à décima potência - outro signature snack dos irmãos |
Como compará-lo com o Tickets? Muito fácil, o próprio Albert resume bem: "a pessoa vai ao Tickets para divertir-se e ao 41 Grados para emocionar-se".
Garoto-propaganda da multinacional Telefonica, Ferran tem viajado muito para atender compromissos com esse e outros compromissos com patrocinadores e dar palestras - esse bebê, portanto, não é cuidado por ele.
O Adrià que está mais plenamente no comando da novidade, Albert corresponde às altas expectativas não só por ter trabalhado ao lado do irmão no El Bulli mais de década, mas também porque trata-se, simplesmente, de um dos mais geniais cozinheiros de sua geração. Vejam porque ele resolveu desafiar-se a si próprio encarando esse projeto, que logicamente exigirá muito dele, por toda a pressão que sofrerá. Afinal, um Adrià é um Adrià, por mais que ele odeie todo o circo que o sobrenome acarreta....
Ao contrário do irmão, ele dá plantão diariamente, comandando a saída dos pratos como um maestro, em pleno salão (dividem-se no serviço garçons e barmen, já que parte da proposta consiste em mesclar gastronomia e coquetelaria).
Apple Mare - parece um martíni, mas não é, óbvio... |
O menu elaborado por ele incorpora invenções recentes e vários minipratos (ou snacks, como prefere chamá-los) pinçados do repertório do El Bulli. Começa-se o banquete com coquetéis....
Gin fizz frio e quente (o quente acrescentado à mesa, com sifão) |
... e também "salgadinhos" que jogam com o nosso cérebro. Esse na foto abaixo que parece-se com o tentáculo de um polvo é "tinto" com milho roxo. O gosto? Kimchi, o mais conhecido prato coreano (na verdade, está mais para conserva fortemente temperada do que prato). O enroladinho negro leva alga e quinoa. E assim por diante.
Mas não pensem que vem um coquetel e basta: não.... esse é um menu para os fortes! Há um prato que é composto de peras cozidas a vácuo em marinada de daiquiri e baunilha. Esse mesmo daiquiri é reaproveitado, e servido, à mesa, como coquetel que acompanha as peras.
Daiquiri abaunilhado e.... |
As peras que foram nele cozidas, a vácuo |
E até um pobre morango vinha à mesa bêbado. Neste caso, recheado de uma gelatina de campari com raspas de laranja. E reparem no "tronco" carbonizado em que é servido: show, não? Para mim, a curadoria da "louça" é um dos fatores que elevam a experência ali a um nível altíssimo.
Os Adrià há muitos e muitos anos derrubaram as barreiras entre entrada, prato e sobremesa, entre doce e salgado. Então, naturalmente, também no 41 nós vemos coisas ligeiramente doces, com cara de mignardise, aparecendo no começo do menu. Exemplo: "folhas" feitas de cenoura, ultra frágeis e belas, levemente "temperadas" com pó de iogurte e menta. Quebradiças, curiosas:
E que dizer dessa torradinha fina como papel que servia de suporte para foie gras, enguia defumada e maçã? A combinação, os foodies logo reconhecerão, traz ecos de Martin Berasategui. E intencionais...
Na sequência aparece um ou outro "velho conhecido" como o corte helado de parmesano (sorvete de parmesão ensanduichado entre biscoitos crocantes) e os pistachulines (pistaches envoltos em lindo “véu” branco com gosto acidulado de iogurte), ambos hits bullinianos.
Corte de parmesano |
Quem nunca provou o celestial brioche recheado de queijo St Marcelin, outro clássico dos Adrià – essencialmente um disco levemente tostado de ambos os lados com gosto e textura de um pão de queijo porém triplamente saboroso – agora terá nova oportunidade.
Há ênfase nos presuntos ibéricos e nos peixes e frutos do mar, como o atum, que aparece em dois dos bocados mais deliciosos: um mini temaki picante e um falso niguiri sushi (em que a nuvem branca que faz-se de arroz desintegra-se ao pousar sobre a língua).
Temaki |
Falsos niguiris |
As diferenças entre o El Bulli e o 41 Grados são tão numerosas quanto as semelhanças. O novo restaurante, além de muitíssimo menor, tem aura cool, luz baixa e décor urbano e moderno (extendendo-se até aos uniformes pretos dos funcionários, super transados e exibindo o logo até nos tênis).
Oferece curta lista de vinhos, focando muito mais na coquetelaria.
Nota-se a mão de Albert em vários aspectos, principalmente na magistral trilha sonora milimetricamente calculada para casar-se com a progressão de sabores e humores. Cinéfilo e diretor de curtas, compôs um setlist cinematográfico que começa zen e tem momentos ora épicos, ora românticos. E sim, inclui essa linda música do filme Amélie, que eu adoro.
O ritmo progride e pega embalo até chegar ao rock do final, quando os comensais já sentem-se inebriados e permite-se o acesso a clientes que queiram apenas tomar um drinque ou três (a partir da meia-noite abre-se o bar ao público). “Eu mesmo desenhei as louças, como os pratos negros de cristal incrustados com espinhas de peixe. E calibrei a música e a luz para criar um entorno que permita transformar a comida em magia”, diz o chef.
Belíssimo prato negro de cristal opaco, customizado para o 41o por casal de artesães |
A comida, forçada a dividir os holofotes com os drinques feitos com diferentes destilados, é quase toda belíssimamente apresentada e deliciosa. Os pequenos bocados líquidos, sólidos, espumosos ou congelados do menu degustação – o único disponível - dão a volta ao mundo.
Uma sopa à chinesa em releitura de Albert |
Homenagem ao México: milho sobre limão, com pimenta chipotle |
Tiradito de corvina com ají amarillo: reflexo de um encantamento pelo Perú |
Sabores tailandeses: discos gelados de côco, gominhos de um incrível limão, curry vermelho |
Espardenyas (o caríssimo pepino do mar), na chapa, com pil-pil |
Como acompanhamento, outro "velho conhecido": o bolo de gergelim com missô, assado em microondas, que fez fama no El Bulli |
Se houve algo de que não gostei? Sim, confesso: desagradou-me a textura da linda rosa gelada de vermute com famboesas, montada em cascas feitas de gengibre caramelizado e desidratado. Simplesmente, mastigar aquilo me doía os dentes de tão frio que era!
Ah, sim: todo mundo a-do-ra essa invenção que Albert já serve há algum tempo, mas eu acho apenas engraçadinho. Trata-se de um "sanduíche" no formato, mas que é para ser um coquetel sólido, digamos assim. O nome oficial? "Coctel de merengue seco de limón "Mars Attack"". Refrescante. E estranho mouthfeel: absolutamente etéreo, dissolve-se de imediato ao pousar sobre a língua.
Mas fora isso, devo dizer que fui muito, muito feliz com aquele menu. Poucas vezes na vida provei sequência tão longa de pratos achando tantos deles deliciosos. Aliás, "a nível de" pura gostosura, sem contar todo o resto, diria que foi a melhor refeição que já fiz na Espanha.
Acabou a música? Hora então de apertar play de novo... esta é outra que está na trilha sonora do jantar no 41 Grados, embora eu tenha invertido a ordem das duas..... Albert aprovaria?..
E voltando a falar do jantar, eis outros bocados ganhadores:
Sonho recheado de queijo, com mel, envolto em casulo de algodão doce |
Querer dizer, cientificamente, quais os melhores pratos do menu, seria uma enorme bobagem. Claro que é totalmente subjetivo. Mas se eu pudesse voltar lá e escolher o que comeria, estes aqui estariam na lista, sem dúvida:
Canapé de pollo (o pollo, ou frango, servido sobre pele crocante de porco) |
Cavalinha levemente defumada com mini shitakes guisados |
Arroz negro vegetal com lula crua e picada: textura indescritível! Dos favoritíssimos da noite. |
Prato criado depois de uma viagem de Albert à Lapônia: espécie de carpaccio de vitela sobre torradinha com pó de vinagre, cebola marinada e cerefólio |
Mexilhões de Bouchot com beurre blanc ao yuzu |
O antigo enamoramento de Albert pelo Japão - de onde ele acaba de voltar - segue vivo e forte. Percebi isso não só no cuidado extremo na escolha da louças e montagem de cada elemento dos pratos como em bocados que tinham um quê de nipônicos, como este:
Navajas (mariscos em forma de navalha) com molho de missô e alho negro |
E mesmo depois de ver tantos "pratos" com visual impactante, continuei levando susto após susto: que estranhas belezas! Essas "bombas" mentoladas, que Albert chama de "chocobombas After Eight, pousavam sobre um falso tronco carbonizado que Albert fez usando resina e um molde.
Depois: chocolate e ar: interessante par. Os casulos ocos causam curiosa sensação na boca, e a avelã, o floco de sal e a gota cremosa trazem grande complexidade ao conjunto. Adorei a brutalidade da pedra usada como suporte, evocando a origem do chocolate.
Nesse aqui, o que me surpreendeu foi a crocância da casquinha, que era frutada, assim como o sorvete, ambos de berries (com toques de limão e gengibre). Como é que o sorvete não amoleceu tudo? Não sei. Mas lembro-me claramente do cróc-cróc que ouvia a cada mordida.
Eis uma sobremesa de look bizarro, mais interessante do que propriamente gostosa. Os cilindros molengas eram espumosos e leves, com delicado sabor de haba tonka (semente que lembra baunilha e amêndoas, e que no Brasil chamamos de cumaru - vem da Amazônia!). O sorvete era outro espanto. Feito da polpa do cacau, não lembrava nem um pouco o chocolate - porque ninguém no Brasil pensou em usar esse ingrediente in natura antes na gastronomia de vanguarda?!
Espuma de haba tonka, sorvete de cacau |
Isto, que Albert chama de profiterole de groselha negra, mais parece um suspiro em sua leveza aerada. No interior, iogurte grego. |
Espetados nos galhos, marshmallows de lima e coco |
Trata-se de uma experiência intimista, multisensorial e deliciosamente estranha que vai bem além do simples comer, como era jantar no El Bulli. E, também como no El Bulli, para prová-la há que se fazer reserva obrigatoriamente pelo site e submetendo-se a certas regras: admitem apenas mesas de dois ou quatro, por exemplo. Temendo comparações entre o novo e o extinto e evitando qualquer divulgação até sentirem-se mais seguros, os Adrià têm mantido a novidade relativamente resguardada.
A hora para quem quiser boas chances de conseguir uma mesa, portanto, é agora.
E mais Albert Adrià no Boa Vida:
Albert Adrià mostra como se faz uma omelete pós-ressaca - vídeo
Minha primeira ida ao 41o, quando ainda era um "bar" servindo "snacks"
E um segundo vídeo, de Albert Adrià na Lapônia, participando do evento Cook it Raw: