E seus instintos, até aqui, têm lhe levado longe. Abre o menu desassossego uma bela “paisagem” disposta sobre vidro com grande minúcia. Debaixo do vidro, algas e gelo seco. Cada marisco e fruto do mar cozido separadamente, por meros segundos, servidos no auge do frescor, formando um todo de imensa delicadeza, uns poucos salicórnios (“aspargos do mar”) para dar um crunch. A maçã verde traz o necessário toque ácido. Um porém: talvez dispensasse a água de côco texturizada que coroa o conjunto – não consigo ver o link entre côco e Cascais, acho que destoa.

Cascais à beira mar, amêijoas, berbigão, mexilhão,
gamba da costa e santola com sumo de maçã verde,
algas e merengue de limão
Comi pela segunda vez um prato que já na primeira não me apetecera. Ele segue remando contra a corrente e as críticas negativas (não só minhas) e servindo a tal…

Miragem de ostras “petrificadas” no deserto,
creme de funcho com caril de madras,
rebentos, plantas e algas
Petrificada, não é. Mas a pobre ostra chega à mesa em sarcófago quebradiço dourado, depois de um pulo em nitrogênio líquido e outro em manteiga de cacau. Some-se a isso curry e algas e…. nem preciso dizer que não funciona.
Outro repeteco de prato servido em Montreal foi este:

A horta da “Galinha dos Ovos de Ouro”,
ovo cozido a baixa temperatura
com aromas de terra
Ovo, trufa, migalhas de pão…. alguma vez a combinação deu errado? Aqui, os finos cabelinhos de alho-poró e cogumelos trazem complexidade ao untuoso conjunto. As migalhas são fritas, ultra-crocantes. E o ovo, linda esfera dourada e bem mole por dentro.
A cozinha poética de Avillez parece caminhar a passo firme rumo a composições comestíveis de paisagens que lhe dizem algo íntimo. Nas palavras de Fernando Pessoa:
Paisagens… Recordações,
Porque até o que se vê
Com primeiras impressões
Algures foi o que é,
No ciclo das sensações.
Querem prova? Eis outra paisagem avilleziana:
Prado Açoreano, mãozinhas de vitela
branca com espargos e trufa de Périgord
Só de pensar em um vasto prado nos Açores, já sonho com a beleza rústica daquilo. Outro prato bem concebido e cheio de nuances, onde eu apenas mudaria o manto verde gelatinoso que encobria o resto.
E em seguida, mais uma paisagem, algo sensual, que me esqueci de fotografar:
Na praia numa fogueira, salmonete assado com migas de choco com tinta e molho dos fígados
Já começava a perder a atenção quando chegou um prato para, de um só golpe, me levar a passear pelo Portugal profundo, sabores da terrinha sem grandes malabarismos. Carne, verdura, alho, doce, salgado, amargo. Muito bom. Tanto que só fui tirar foto a meio caminho…
Cabritinho da Serra da Estrela em duas cozeduras,
puré de beterraba e alho, grelos salteados
e crosta de pão com ervas e laranja
Aí era partir pro abraço: não havia como não se deleitar com isto aqui:
Serra da estrela, queijo, banana e marmelada
E encerramos com chave de ouro: cubinhos de marmelada, sorvete, enfim: miniaturinhas diversas que àquela altura da noite e de vinhos já não discernia tão bem, se me permitem a sinceridade:
O mistério da queijada de Sintra
Estava tudo perfeito? Não. Acho, principalmente, que um restaurante belo daquele jeito, servindo comida nesse nível de sofisticação mereceria um serviço melhor – eu mal ouvia as explicações da tímida garçonete. Acho também, como já disse antes, que Avillez será mais chef quando seu estilo pessoal estiver mais destilado – ainda noto muitos ecos tecno-espanhois em seus pratos.
Mas se me perguntarem se gostei do Tavares, a resposta, apesar das imperfeições, é um veemente SIM! Podem apostar que este menino ainda vai dar o que falar…
Tavares: rua da Misericórdia, 35, tel. 351 342-1112